8.4.11

As palavras e as coisas

postado por Ana Paula de Campos

Antes de mais nada é preciso esclarecer que toma-se aqui o título da importantíssma obra do filósofo francês Michel Foucault apenas como disparador de uma reflexão sobre as múltiplas formas da joalheria na contemporaneidade e, consequentemente, da vasta nomenclatura utilizada para designá-la.

De fato,a clássica definição de joia como “ornamento confeccionado em materiais preciosos”  parece contemplar apenas uma parte da atual produção joalheira, que a partir das transformações postas em andamento desde meados do sec XX, possibilitaram ao objeto joia uma ampliação de sua tipologia e a extensão de seus parâmetros conceituais. Tal expansão trouxe consigo novas formas de ornamento, novas possibilidades de uso de materiais e novos propósitos, ratificando o papel da joia enquanto meio de expressão das dinâmicas sociais e individuais elaboradas por aqueles que as criam, possuem e usam. Reafirma-se o seu papel de signo portador de características e valores relativos aos sujeitos e seu tempo, e o nosso tempo está marcado pelo alargamento das possibilidades de ornamentação pessoal.

Diante de um cenário múltiplo e mutante, a nomenclatura dessa se entende na velocidade da criatividade humana, abarcando todas as novidades e tendências. Nesses tempos onde “tudo é permitido” seria por demais ingênuo desconsiderar que, para além da ideia de expressão e de liberdade criativa, essa multiplicidade de possibilidades (sempre prontas às diferenciações mais sutis) traz consigo uma segmentação muito pertinente à lógica do mercado.

Para não nos perdermos nos meandros dos rótulos a granel é preciso, a meu ver, abordar tamanha diversidade a partir da identificação de dois núcleos bem distintos de produção joalheira na contemporaneidade, uma vinculada à arte e outra relacionada ao design. Ambas são resultado das transformações engendradas historicamente, sendo possível  identificar parâmetros singulares de distinção entre elas.

A produção no campo do design concebe a joia enquanto produto, um objeto cujo propósito é ser ofertado para um consumidor, sendo este considerado em maior ou menor grau durante os processos de concepção e desenvolvimento. Trata-se de uma joalheria orientada para sua função de ornamento, diretamente articulada com e pelo mercado, estando comprometida em diferentes escalas com as dinâmicas da moda e do luxo num discurso alinhavado à exibição de status e distinção social.

Já a joia enquanto produto artístico tem como premissa um compromisso com a poética, desvinculando-se do imaginário secular construido em seu entorno e distanciando-se de seu compromisso com os pressupostos da beleza, da ornamentação e da função decorativa, inclusive podendo abandoná-los completamente. Ao tomar a joia como assunto e meio de expressão artística a arte-joalheria toma o sensível como bússola para uma produção que não está diretamente  orientada para o mercado (inserindo-se nele ou não), configurando-se de modo livre diante de significações e formatos pré determinados.

Outros aspectos podem se apresentar como parâmetros para elencar semelhanças e diferenças entre a joia-design e a joia-arte , tais como modo e da escala de produção, materiais utilizados e processos de criação. Entretanto esses recursos configuram-se como argumentos que se tornam frágeis diante de uma reflexão mais aprofundada.

Pensar nos meios utilizados na produção joalheira como critério de distinção já não se demontra estratégia plausível nem no campo da arte, que de Duchamp às mídias digitais abandonou a manufatura como forma intrínseca de qualificação, nem no terreno do design, aonde as tecnologias possibilitam paradoxos como a “customização em série”.

Quanto à questão da materialidade, a atual inserção de materiais “comuns” na joalheria estende-se por todo um espectro de adornos, chegando até à esfera da joia tradicional, onde se observa a presença de materiais “não preciosos” (vidro, couro, borracha, palha, cristais, etc.) ao lado de ouro e pedras. Desse modo, evidencia-se que pautar na seleção e uso dos materiais a atribuição de qualidades para a joia não constitui critério imperativo para distinguir uma produção joalheira comprometida com o design ou com a arte. Na verdade isso consiste numa perigosa simplificação que culmina na ideia de que apenas o uso de materiais “alternativos” basta para atribuir a qualquer peça o carater artístico de sua produção.

Por fim, outro argumento erroneamente utilizado para aproximar essas distintas abordagens reside no fato de que tanto design quanto arte possuem repertórios comuns, compartilham a estética como conteúdo inerente a ambos os campos de atuação, especialmente no que concerne aos processos criativos, à noções de arranjo e composição. Entretanto, semelhanças como essa ocorrem em muitas áreas, como por exemplo nos conteúdos matemáticos presentes na física, engenharia e contabilidade, tornando-as próximas em alguns aspectos mas não eliminando suas diferenças essenciais.

Busca-se aqui um aprofundamento dessa questão, uma reflexão que certamente não vislumbra a criação de uma categorização e/ou classificação para a diversidade da produção contemporânea, já que da joia tradicional à joia arte estende-se um vasta gama de possibilidades. A intenção é que diante da multipliciade de termos oferecidos e disseminados por aqueles que se interessam e atuam nesse território, seja possível um posicionamento mais crítico, uma espécie de contribuição para a formação de uma cultura conceitual no campo da joalheria. Isso porque, ainda que a atual superficialidade que decorre da aceleração contemporânea nos conduza a avaliações rápidas, as semelhanças aparentes não podem ser tomadas como essência pois corre-se o risco de um achatamento e de uma banalização dos signficados das palavras e das coisas.

3 comentários:

  1. Vale ressaltar que a banalização é quanto ao uso da palavra design, que é importada. A língua portuguesa carece de um tradução adequada de tal palavra. Bom consultar nossos pensadores, Flavio Motta por exemplo, um artista por excelencia cujo texto sobre arte, design e produção cultural do povo brasileiro deve ser lido e respeitado.
    A não compreenção da palavra design, por alguns, gera desentendimentos de conceituação. Sabe-se que design remete ao projeto, do lançar-se à, e desse modo a joia como expressão artistica ou como jóia design, ao qual muitos se referem ao modo como a joia é produzida, são projetadas, ambas são desenhadas.
    Portanto, como coloquei na abertura da exposiçao JOIA CONTEMPORANEA BRASILEIRA no dia 6 de abril no A CASA museu do objeto brasileiro e, também, como me posicionei frente ao meu trabalho exposto na minha exposição de joias no Pratt Institute, resultado de minha defesa defendida em 1986 como mestre na School of Fine Arts, arte, design, artesanato muitas vezes se esbarram, se somam, se distanciam.
    Quanto a palavra poesia, poiesis, do grego, quer dizer... o fazer....artistas, designers e artesãos...fazem!!!
    Vale uma pesquisa histórica da arte no Brasil e uma pesquisa na origem das palavras discutidas no texto.
    Miriam Mirna Korolkovas
    MFA Pratt Institute/NY/EUA
    PhD FAUUSP/BR

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  2. Como bem disse Ana Paula de Campos: a joalheria é múltipla e mutante.
    A joalheria contemporânea se distanciou da Joalheria moderna,desprezou dos belos desenhos à guache de cartier e de Van cleef e as belas jóias com gemas raras e diamantes puros confeccionadas por grandes mestres da ourivesaria. Esse distanciamento existe até hoje, o mais interessante que uma não precisou morrer para a outra, ou outras, prevalecerem.

    A joalheria se distanciou ainda no séc XIX com o Arts & Crafs moviments, que a partir de Morris e os escritos de Ruskin, reinvidicou o retorno ao artesanal, a assinatura do artista-artesão nas artes decorativas. Diferente dos demais ofícios do movimento como tapeçaria, cerâmica, textil e madeira, a joalheria era a única que não tinha um material específico. Foi a liberdade da joia, foi a primeira vez que surgiu a pergunta: Essa joia é feita de quê?

    Muito debati, discuti e assumi uma postura, por vezes autoritária, quando cursei artes plásticas (UNB) de que joia era Arte. Eu falava isso com uma ingênua propriedade em rodas de artistas. Falava de jóias que tinham em seu cerne fundamentos de movimentos artísticos, como futurismos, surealismo, minimalismo, opart, pop art e por aí vai. Claro, nunca consegui convecê-los pois a arte não pode ter função, apenas a estética.
    Foi então que morei em Londres e descobri que joalheria é.......JOALHERIA! É um saber, um conhecimento próprio. Foi então que me aprofundei no movimento Arts & Crafts e vi que a jóia é uma arte – ARTE DECORATIVA ou ARTE APLICADA. Pesquisei muito na St. Percy, na Contemporary Apllied Aarts, uma loja linda onde a jóia está ao lado da cerâmica, vidro, tecidos e madeira todas no patamar de crafts(artesanato). Desde então sinto um orgulho de ser designer maker, trazendo na minha profissão os ensinamentos de Morris. Vi a quão boba eu fui querendo impor a joia no universo das artes plásticas.

    Me desculpe , mas não concordo quando diz que a joia enquanto produto artístico, distancia ou até abandona seus pressupostos da beleza, da ornamentação e da função decorativa. Você retirou toda a essência da Joia. O que resta? Pode ser expressão artística, Arte, mas não é jóia. Neste mesmo trecho você diz que a jóia-arte não está diretamente orientada para o mercado. Me desculpe mais uma vez, mas até a Arte Contemporânea com sua obras polêmicas, efêmeras e espetaculares atendem à um mercado- o mercado da Arte. Qual o mercado a Joia-arte? Mercado da Joia, ou da Arte? Quem compra procura uma jóia, ou uma obra de arte? Acho que perguntas como estaS devem ser um exercício para se dividir.
    A joalheria é múltipla. jóia é produto, a Arte é produto. Na Inglaterra vende-se joalheria contemporânea, como na Holanda, Alemanha e em todos os países. Jóias diferenciadas, com a marca do artista, mas indiscutivelmente com sua essência de beleza e sua função decorativa, pois não se pode negar os conceitos que libertou a joalheria do marasmo criativo e da massificação produtiva da revolução industrial.
    Quanto à jóia design, é uma discussão muito nova, com muito fervor. Não me refiro ao design industrial, onde a métrica são as novas tecnologias de produção. Me refiro ao design, como uma nova narrativa, como uma nova linha de pesquisa. O design sustentável, social e cultural, divertido e inovador, isso me interessa.
    A joalheria é viva e mutante. Joalheria é um conceito amplo que abrange a jóia, artesanato, a biju e agora também o design. Como disse a Miriam é arte, design, artesanato que muitas vezes se esbarram, se somam, se distanciam.
    Enfim, isso é papo para muitas páginas. A joalheria pulsa e se alimenta com discussões com esta. Muito obrigada.

    virginia moraes- RJ

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  3. Estudo e pratico a Joalheria há mais de 10 anos, sou graduada em Design de Moda e meu trabalho de especialização em Design de Joias trata, ainda de forma muito rasa, de um questionamento em relação a possível personalização da joia, de forma individual, apesar de sua possibilidade de fabricação em série. É design emocional, que visa valorizar o usuário como indivíduo único, a partir de uma solução técnica de construção, que possibilita a desconstrução da forma e função e reconstrução ao desejo do indivíduo. Dessa forma, eu consegui identificar uma possibilidade de personalização mais profunda da joia, mesmo em uma produção seriada que, pela possibilidade de intercâmbios entre os componentes da peça.
    Com esse desenvolvimento, de certa forma, eu consegui provar que com Design (que sempre teve uma presença gélida perto de discussões do usuário como ser único), pode ser ferramenta de sensibilização e principalmente de viabilização de uma comunicação efetiva não verbal e individual.
    Eu iniciei esse desenvolvimento em 2007, em um questionamento e inquietação pessoal em relação ao que o mercado joalheiro e, é criado pelos pseudos Designers de Joias contemporâneos que bradam usar materiais "diferentes" porque "todas as possibilidades em metais preciosos já foram esgotadas e a 'tendência' é a procura e pesquisa de nova matéria que possa abrir novas portas na criação de joias". Nada contra quem pensa assim, mas eu acredito que o que anda esgotado é o universo criativo dessas pessoas, até porque, na maioria dos casos, essas pessoas que dizem que alguma coisa foi esgotada nem se quer estudaram Design, no máximo se frustraram em uma área qualquer, passaram a rabiscar qualquer coisa e, por isso, se alto intitulam Designers.
    O que falta é realmente dar-se "nomes aos bois": quem faz um bracelete de resina ou tecido jamais poderia ser chamado de designer de joias e sim aderecista ou designer de adereços (já que está na moda), pelo simples fato de não saber como fazer uma joia e nem usar materiais que compõem as joias. Da mesma forma como uma pessoa que projeta aviões não é chamada de designer automobilístico porque, apesar dos dois objetos servirem basicamente para os mesmos fins de transporte, também, basicamente os materiais utilizados pra construção de um carro e um avião são completamente diferentes. E se surgir uma outra forma de transporte e locomoção híbrida entre carro e avião, o desenvolvedor disso não vai ser chamado de automobilístico e nem de aeronáutico.
    A diferenciação entre joia-design e joia-arte está no erro da nomenclatura de joi-arte, porque quem faz arte é artista e se artista é quem faz arte, consequentemente o que foi feito não foi joia e sim algo que pode ornamentar o corpo mas que está inserido em um outro universo de coisas muito mais amplo e complexo do que de joia. Nunca ví ninguém construir um carro de papel e chamar de veiculo-arte. A partir do momento que o metal foi trocado pelo papel, aquilo que foi construído perde a qualificação de veículo e passa a figurar em um outro universo - o da arte. O Design para mim sempre foi sinônimo de solução, de desenvolvimento de uma solução para um problema existente e dessa forma, a joia-design é uma joia "solucionada", uma opção de solução dentro de um universo de possibilidades.
    Duchamp foi genial em seu questionamento mas, infelizmente, as pessoas de pouco raciocínio pensam que podem fazer de qualquer coisa uma joia e chamar de joia. Essa coisa de transgressão da matéria já deu na lua e me parece muito mais uma muleta pra quem nunca procurou saber o que é joia do que um questionamento efetivo do que existe. Obviamente é o tipo de discussão que pode gerar vários mestrados e doutorados por aí a fora, mas deveria ser urgentemente discutida amplamente.
    Me desculpe essa êmese cerebral. Obrigada
    Fernanda, São Paulo

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